quarta-feira, 22 de junho de 2022

O canto dos Pinheirais

A simplicidade das coisas muitas vezes nos assusta, mas são as inesperadas obras da vida que nos atormentam. Tu nasces, andas, corres e some. Um dia tem que voltar. Descobre que neste mesmo dia em que volta, traz o joelho tão ralado que é como se tivesse tomado muitos tombos, os olhos não brilham como uma chama jovem. Carregara para sempre uma confusão na cabeça que nem sabe como começou. Morrerá, quase certo isso, sem resolver boa parte de seu passado. A sol seca o asfalto úmido, eu, bebendo uma última cerveja no terminal, entre as dezenas de pessoas que passam por mim neste instante, sou a única pessoa que interessa para esta história continuar. Sendo assim respiro, e como um facho de luz que se movimenta pelo solo, começo o pensar. Em dias de chuvas, com muito vento, me assustava. Isso era natural para uma criança, o barulho dos trovões, o bater do vento sobre as árvores, tudo isso era terrivelmente assustador para mim. Meus pais até achavam engraçado, esse medo, uma coisa de adulto que leva consigo lembranças boas de chuva que uma criança ainda não pode presenciar. O que me assustava na tempestade, essas coisas do fim do mundo, de parecer que o último selo fora retirado, e a repercussão de um país que sofria com enchentes e inundações. As manchetes dos jornais no dia seguinte mostravam uma Porto Alegre caótica, pontos críticos que aceleravam os desastres sobre as cabeças das pessoas. Era um caos, um tipo de caos que me foi apresentado na infância. Um tipo de mal que não me vacinou para os outros muitos males que a vida pode me apresentar. Ao subir no ônibus aquela tarde, o que mudava em mim entre as moedas e trocados, o habitual vale transporte que não havia, as meias molhadas, e pés resistentes à tristeza que baixou em meu coração; era uma chuva que pairava, dentro e fora. As coisas de adulto nos deixam mais triste que um breve temporal. Eu já havia entendido há muito um choro de mulher, mas o choro de mulher sempre parece lhe escapar quando ela pensa, ou quer acreditar, que ele não possa voltar. A viagem seguia e ia deixando para trás mais uma vez minha adorada vida, que tantos e todos os problemas me causou, tantas alegrias me felicitou, muitas. Muitas vidas uns diriam, abraçados à suas simplicidades; eu sempre procurei por mais. Um contentar falecido dos sentidos sempre me assustou, ao mesmo que uma linha romântica batia aos meus olhos ao desejar alcançar sonhos que me tomariam um rumo. Seriam um milhão de sinônimos que seriam facilmente descritos com o balançar dos cabelos... Que facilitaria, interminavelmente seria em adjetivos, uma infindável lista de filmes e livros que acredito, falaram muito para mim sem falar. Gosto da estrada, as coisas passam, se resgatam e não é como se nunca mais fosse voltar; a saudade é algo bom de se sentir muitas vezes, só não aprecio a saudade quando não há como a matar, dar nó ao fim. Sempre me deixou um desconforto cruel o fato do passado não poder ser (re)apurado, certo que alguns me causam conforto, outros arrumaram de tão bem seus lugares em um ninho da história que penso ser errado tocar. Claro que não são os dias, os dias mais nada são que conseqüências das pessoas que o fazem. E mesmo assim, muitas vezes acordamos irados, e muitas vezes, agora, temos que seguir para outros lados, procurar um brilho que nos faça sorrir, uma história. Porque o desapego sempre me parece um velho pançudo e chato. Ele gastou horas de sua vida no trabalho, se apegou ou deixou se apegar pela rotina de se conquistar uma carreira e agora que perde os poucos cabelos que lhe resta se acha um vencedor. É difícil encarar um sujeito desses. E difícil fazer a mudança de direção. Agora que vejo, por uma última vez esses prédios; sinto falta dos bons amigos que consegui cultivar. A eles não houveram velhos pançudos, mas sim, mesas de bar risonhas, noites intermináveis na alma, as ruas, memórias, as lâmpadas da cidade sempre foram realmente a verve luz que encontrávamos... Recordações, retratos mal tirados de nossas vidas... Concentrei-me nas luvas que não usava, apoiei a cabeça contra vidro deixando o pensar me levar. Pela última vez vejo o rio, um breve trecho da estrada me premia com a coloração marinha do lago... Lago; pois o rio dos teus sonhos nunca passou de um lago. Alguém um dia te escrevera um belo romance, algo que se espalhe pelas estradas, como minha vida agora, uma volta para casa, como um rio ao leito. Suas ilhas e precipitações, seus povo que sofre no paraíso, nunca vi tanto de mim neste trecho de água que banha a cidade. É sujo pensar isso, mas muitas vezes eu fui, e se a idéia principal for da pureza... Estamos iguais. Cansados dos pescadores, de quem nos faz penar uma maré mais densa, peixes de aquários vesgos. Meus olhos procuram algo que a estrada já fez passar. Os pinheirais assoviam, posso ouvir um gritante vento vencer o vidro da janela e chegar a mim como uma canção mágica, talvez um grito, uma saudação da natureza a minha coragem. "Vá filha", ela diz, "que são os poucos dias, as poucas horas a penar, o amor te levou um pedaço, e te acrescentou mais um bocado de força ao coração, levasse tempo para vencer uma vida, e talvez nem queira lutar até o final". Não quero um esforço final, onde um possível suspiro de solidão pode me pegar. Quero, talvez, olhos confortantes que possam me guiar quando sentir medo, ou onde eu possa ler um amor fácil de entender e de aceitação boba, envelhecer ao seu lado. Um egoísmo, isso que nós mexe por dentro e acende chamas, quando não houve tempestade, não houve medo, levávamos tudo bem, na estrada podia se andar. Era fácil achar os caminhos, o leito colaborava e água era boa. Os pinheirais sossegados balançavam em silêncio, sem ira... Meus olhos procuravam novos rumos, o ônibus seguia, uma estrada se abria, a vida... tinha que continuar.

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