quinta-feira, 6 de julho de 2023

Café doce

Era um pouco mais que uma manhã. Ele já havia lavado o rosto, escovado os dentes e molhado cabelo para depois penteá-los. Era rosa a luz do sol que entrava pela janela. Um silencio perturbador invadia os cubículos do apartamento. O cheiro de um café quente crescia de uma xícara marrom e andava pela casa. Encontrava as toalhas sujas do banheiro e saia pela estreita janela do Box entrando na pela sala do apartamento dela. Ela assistiu a filmes a noite toda, dormiu com o DVD ligado, o cinzeiro lhe estava a poucos metros do nariz, o nariz estava junto à cabeça, estes, atirados em um sofá verde, o moletom bege, tinha manchas de sorvete de seis horas atrás, queimaduras de cigarro de duas semanas e secreção genital de dois dias. Ela sabia que seria mais um dia em que chegaria atrasada ao trabalho que os dentes seriam escovados nos banheiros da estação rodoviária, que seu chefe a olharia com aquela careta de imperador romano que ela sentiria-se mais uma vez, diminuída diante do poder dele sobre seus subordinados. Sabia que esqueceria de por comida e água ao gato, e que nove horas depois, se tivesse azar, chegaria em casa, e iria, novamente, se sentir culpada. Sabia ela que mais cedo ou mais tarde naquele dia ele voltava de viagem, e que iria passar por lá, com as mesmas perguntas de quando ela tinha quatorze anos. Acordou sentindo cheiro de mãe, e a procurou por um estante pela sala, a vinheta inicial do DVD repetindo e repetindo. Ela saindo correndo com aquele casaco azul horrendo que lhe garantia que só fulano olhasse para ela, mesmo que dela ele mais desejasse as panturrilhas, encontra ele todas as manhas pelo estreito corredor do ônibus, e enfrentar aquele seu perfume barato de promoção de hipermercado. Graças adeus ela nunca teve que dividir um acento no ônibus com ele. Quando no verão ela o flagrava babando em suas panturrilhas ela se intimidava e lembrava o resto do mês de sair de calças. Adorava o amanhecer daquela cidade, o céu sempre se iniciava cinza, um azulado nascia do seu centro, este ia levando o cinza para o horizonte, distante mas não muito, ainda meio dia podia se ver ele, lá longe dando um tchau. Quando a tarde chegava, aquele cinza se transformava no rosa que lhe invadia casa, bem antes do amanhecer. Ele desejava que assim fosse um dia inteiro, que fosse assim por inteiro as horas que chegariam. Mas o lixo acumulava embaixo da escavada, os sacos eram disputados pelas baratas que cresciam na caixa de cereal que comeu semana retrasada. Noite passada ela sonhou com pombos. Não há graça nenhuma em sonhar com pombos, eles voam, eles comem grãos, eles fazem sons estranhos, que distraidamente você diria que seria de uma alguém levando estocadas na bunda. Mas não era, eram pombos, nada mais que galinhas voadoras. Uma casa de vidro suspensa ao ar, isso lhe soava impressionista, tinha um ar Salvador Dalí em tudo aquilo, aquele amigo iria voltar de viagem cheio de fotografias, mas ele não queria ouvir nem metade das historias que ela tinha para contar. Postou se ao parapeito da janela. De onde olhava, via Olga sair para o trabalho, sempre Olga as seis e meia, nunca levou um tropicão na calçada, nem mesmo quando umas das pedras se elevou com a raiz de uma arvore próxima. Sempre com seus vestidos ridiculamente estampados de florais, sempre o cabelo preso na nuca e a nuca presa à cabeça, a cabeça ao pescoço, o pescoço ao corpo e o corpo a rotina de nunca tropeçar. Era engraçado, e ela chegava a babar muitas vezes ao rir disto e seu café ficava a esfriava ao lado do braço na janela. A busca ficou vazia quando um facho de sol bateu na parede de um prédio que estava a duzentos metros de lá, estava amanhecendo. Ele não tinha mais o que falar para ela, que não fosse lhe pedir desculpa. Muito talvez a culpa era dele por ela ter tropeçado em seu lixo na calçada. Ele lhe colheu a mão do chão, lhe deu apoio para se levantar, e já de pe seus rostos, seus olhos, o ar que ambos respiravam se encontraram. Ele nunca tinha visto tão belos olhos, tão desejável boca, e sobrancelhas tão provocantes. Ele aspirou o perfume dela e sentiu seus pés flutuarem, ele ali sabia que encontrava o céu, e que esse céu tropeçara em seu lixo as quinze para sete da manhã, logo depois de que passara Olga, Olga que nunca havia tropeçado... mas Olga não era, e estava bem longe de ser céu, estava tão longe, que se lê soubesse da eficácia de um saco de lixo na calçada para se fazer levar um tropicão, ele a muito já o havia colocado para ver Olga cair. Ficando desajeitado ao ver a moça mancar ao se firmar de pé, ele lhe oferece um café quente, uma poltrona confortavelmente vermelha e um minuto de repouso em seu chiqueiro particular. A escova de cabelo tem dias que não ajuda, a deixava com o cabelo elétrico, e fazia ela se sentir recém saída de um filme de terror. Com duas calças limpas para usar e outras cinco molhadas na maquina de lavar, achar uma única blusa que combinasse se o dia esquentasse, esta um tinha uma frase de protesto estampada, não aquela que ganhou quando fez vinte um, “SEXO JÀ!”, mas outra, que meio que mandava as pessoas para a puta que os pariu, mas em outra língua. Os sapatos podiam ser pretos ou os tênis multicoloridos, as meias em sua maioria eram brancas, mas suas preferidas eram rosas, amarelas, azul e com algum bichinho bordado. Ela saiu apressada, o cabelo, agora molhado, umedecia o casaco, o sapato de salto médio, estalava no piso do corredor do prédio, deu sorte em pegar o elevador descendo, saiu deste correndo, viu na rua uma luz que cegava, viu uma vontade de voltar para cama a cada passo, viu o coletivo numero trezentos e vinte nove, de cor azulada, listras brancas, o mesmo bigode negro ao volante, sorrindo pro nada feito um babaca com sorte. Ela correu, o quanto pode, o dedo já se estendia junto ao braço que erguia ela chegava a calçada, quando tudo a sua frente embaçou e as pernas param de se mover, seu corpo foi de encontro ao chão, e logo vinha uma mão cheia de desculpas a lhe amparar. Cheirava a café, tinha barba mal feita, seus olhos eram escuros como uma noite, tinha costeletas que confundiam com o cabelo desarrumado, tinha fios vermelhos no cabelo, fios isolados, mas bastante visíveis àquela hora do dia. Seus dedos eram finos e longos como de um pianista desajeitado, seus dentes eram tortos, e seu queixo tinha boa harmonia com a boca de lábios desenhados e o pescoço forte. Ela pensou que foi bom ter lavado o cabelo, foi bom ter escolhido o salto e não os coloridos tênis e as meias de bichinhos, que este ser desarrumado de jaqueta verde, e possível mancha de doce de uva do lado direito de sua veste, foste um bom rapaz. Que ela se encantou fácil por aquele sujeito descompromissado consigo mesmo, cheirando a café, e aceitou quando ele lhe prestou socorro, e nem ligou ou se importou do lixo que fez ela perder o ônibus ser dele, e menos que chegari bastante atrasada. Já no apartamento dele, enquanto ele buscava o café na cozinha, ela viu seus quadros de artistas de Jazz, um violão sem cordas, um bloco de papel amarelado ao lado do sofá, junto de raspas de lápis apontado. O que encantou ela neste singular cenário aos seus olhos foi o relógio cuco do gato Felix, e o cheiro de café das coisas, pois eram as coisas naquele apartamento que cheiravam a café, como se a tudo ali tivesse algum dia, pingado uma gota da bebida escura e amarga. Ele voltou da cozinha com sorriso bobo na cara uma xícara branca cheia de café, e perguntou onde ela havia se machucado. Ela ergueu a bainha da calça ate o joelho, e assim também despindo a panturrilha, a sua tão formosa e famosa panturrilha, adorada por coletivos a fora em dias quentes de verão. Ele não precisava de mais nada alem do que já havia acontecido naquele dia para ter ela em carinho, mas depois de ver sua panturrilha, ele realmente começou a querer ela para si. Ela disse “aqui”, apontado o local ralado com o dedo. Ela lhe falou isso olhando-o nos olhos, de baixo para cima, com um puro ar de fragilidade de criança.

Nenhum comentário: